Nesta semana, as imagens de Marina Silva durante uma audiência em Brasília chamaram a atenção do país. O desrespeito de seus colegas parlamentares inclui machismo, misoginia, racismo e um histórico de exploração visando lucro rápido na Amazônia que perdura por décadas. Marina, que há muitos anos se destaca nesse cenário, continua firme em sua crença na importância de preservar o lugar onde nasceu.
Curiosamente, a maior floresta do planeta não é significativa apenas para quem vive ou esteve lá. Mas por que parece que, entre tantos senadores, apenas a ministra demonstra preocupação genuína?
Em uma conexão improvável entre as injustiças do Norte do Brasil e da França, o filme “Entre Dois Mundos”, que estreou recentemente, protagonizado por Juliette Binoche, questiona o quanto você realmente se importa com a causa pela qual luta. Qual é a sua luta verdadeira — é possível que aqueles que não pertencem à minoria necessitada consigam traduzir suas dores e anseios?
Dirigido pelo escritor e cineasta Emmanuel Carrère, o filme é baseado na obra da jornalista Florence Aubenas, que mergulhou na vida das mulheres que limpam os luxuosos ferries na madrugada da costa francesa. Antes de você se deitar em uma cama bem arrumada, uma mulher limpou 60 leitos em apenas 90 minutos. A dor muscular de quem trabalha incessantemente por um salário irrisório raramente é sentida por aqueles que relaxam a bordo de um passeio marítimo. Para entender, é necessário sentir a dor do outro.
No filme, a escritora Marianne finge precisar daquele emprego para se aproximar da realidade das mulheres que realmente dependem daquele pouco dinheiro para sustentar filhos e pagar o aluguel. “O que será que ela pensaria se soubesse que aqueles centavos que dividimos têm um valor muito maior para ela do que para mim?”, reflete a protagonista durante uma de suas crises de consciência com suas novas amigas.
Todas as humilhações estão ali: a busca por emprego, a necessidade de afirmar em entrevistas que você ama limpar banheiros; a falta de empatia de superiores; a resignação diante da dureza da vida. Essa última, coletiva. A vida se torna menos árdua quando estamos ao lado de quem entende nossa luta. O livro que deu origem ao filme fez sentido, sensibilizando os privilegiados sobre as condições de trabalho da tripulação.
Entretanto, enganar pessoas que poderiam precisar mais da amizade da personagem Marianne do que da visibilidade que ela proporciona é questionável. Afinal, do que realmente necessitam aqueles que não somos? Ser um deles por alguns meses nos torna parte do grupo?
Em um Brasil repleto de desafios em escala continental, é difícil realmente se conectar com a realidade de quem está distante. É por isso que escolhemos representantes. É por isso que ouvimos o que eles têm a dizer. É por isso que lemos diferentes reportagens sobre um mesmo fato. Informar-se é entender. Entender é evitar enganos e, talvez, prevenir prejuízos futuros.
Quantas vezes é preciso ir à Amazônia para compreender a situação por lá? Marina Silva, que está envolvida com a floresta há quase setenta anos, certamente tem mais a compartilhar sobre o assunto do que eu. Existem, claro, senadores que também nasceram em estados amazônicos, mas observar o histórico de cada um deixa claro quem está do lado certo da história. A exploração de petróleo na foz do Amazonas, no Amapá, não parece uma boa ideia para quem se dedica à proteção do meio ambiente desde antes de nascermos. Assim, podemos entender o que realmente importa na confusão registrada em Brasília esta semana.
“Há quase 70 anos, quando foram implementados eixos rodoviários para acessar o interior da Amazônia, o governo brasileiro iniciou uma das maiores e mais agressivas ocupações de fronteira do mundo. A Amazônia, de fato, passou a ter importância econômica nacional e internacional. Não pelo que é (estávamos cegos), mas pelo que poderia ser explorado dela. A cidade consome o mundo. A Utopia Amazônica consiste em reconhecer a floresta como um ser vivo, com o direito à vida em sua plenitude. Nela, o maior investimento deve ser na preservação da vida, seja de humanos ou não humanos”, afirma Marcos Colón, no livro “Utopias Amazônicas”. Ele dirigiu dois documentários sobre a floresta e leciona sobre povos indígenas em uma universidade no Arizona.
O mundo, em direção ao colapso climático, exige que entendamos a floresta por meio de quem dela provém. “A utopia não é mais um não-lugar, mas um lugar total, o destino ao qual precisamos nos dirigir, onde os povos originários sempre estiveram”, diz Colón. São eles, junto aos que aprenderam com eles, que possuem as respostas.
“O desejo de descer da minha vida para outro mundo é o que temos em comum”, reflete Juliette Binoche sobre suas semelhanças com a personagem. Embora nunca se tornem faxineiras de ferry, podem narrar (a atriz, atuando; a personagem, escrevendo) como é estar na pele do outro. A literatura (e a arte em geral) oferece aos sensíveis a oportunidade de vivenciar a experiência alheia.
Alguns se referem pejorativamente ao termo “militância na poltrona”, que descreve aqueles que falam sobre questões sem realmente entender como é vivenciar o problema. Podemos reverter isso para “ouvinte na poltrona” — alguém que, a partir de sua posição, escuta e compreende o que quem viveu a situação tem a dizer, evitando a propagação de desinformação ou fake news sobre qualquer tema. O silêncio é preferível a espalhar absurdos sobre o que se desconhece.
O mundo é vasto e mudar sua realidade pode parecer uma tarefa monumental. Mas, como disse Eduardo Galeano, é para isso que as utopias existem: para nos inspirar a caminhar. Marina Silva é uma figura notável porque continua avançando em busca de sua utopia. Se formos íntegros, também buscaremos a nossa.
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