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“Pedras de vesícula bovina: o que faz essas joias do gado tão valiosas?”

No Brasil, as formações que se acumulam na vesícula biliar dos bois são frequentemente descartadas, enquanto na China são valorizadas como verdadeiros tesouros. Com séculos de uso na medicina tradicional, esses cálculos podem ter um preço superior ao da própria carne do animal. O aumento do interesse por essas pedras, conhecidas como “ouro bovino”, está gerando um mercado bilionário e atraindo a atenção de contrabandistas.

“Nos últimos anos, o termo ‘ouro bovino’ tem sido utilizado para se referir à vesícula biliar do boi, especialmente devido ao seu elevado valor de mercado na Ásia. No entanto, apesar do apelo comercial, a ciência ocidental ainda não reconhece benefícios nutricionais ou terapêuticos seguros relacionados ao consumo dessas estruturas”, explica Carla de Castro, nutricionista da Clínica Sallva, em Brasília.

Na China, as pedras de vesícula biliar, chamadas de niu-huang, são associadas a propriedades sedativas, antitóxicas e neuroprotetoras. Elas são utilizadas em medicamentos tradicionais, como o Angong Niuhuang Wan, que é indicado para condições como acidentes vasculares cerebrais (AVCs), convulsões e febres altas, entre outros.

Uma pesquisa realizada por cientistas chineses e publicada em janeiro na revista Frontiers in Pharmacology destacou o uso dessas pedras no tratamento de distúrbios neurológicos, enfatizando seu valor na medicina tradicional em situações críticas. “Na medicina tradicional chinesa, a vesícula biliar é vista como um órgão que influencia a tomada de decisões, a coragem e o equilíbrio energético. Acredita-se que a bile possui propriedades digestivas e desintoxicantes, mas essas crenças fazem parte de um sistema filosófico e médico que não segue os mesmos princípios da ciência ocidental”, ressalta Carla.

Conforme estimativas do setor, uma pedra pode ter um valor entre US$ 1,7 mil e US$ 4 mil (aproximadamente R$ 9,5 mil a R$ 22,2 mil), dependendo do tamanho e pureza. Em muitos casos, esses valores superam o custo total da carne de um boi. No entanto, essas pedras são raras, aparecendo em menos de 1% dos animais abatidos. No Brasil, que possui o maior rebanho bovino do mundo, a demanda internacional gerou um comércio paralelo, muitas vezes ilegal.

“Embora não exista regulamentação da Anvisa sobre o uso terapêutico, essas pedras são exportadas como subprodutos de origem animal. Isso cria brechas sanitárias, desvios de carga e até tráfico, o que já tem ocorrido”, explica a nutricionista Daniela Alvarenga Ribeiro, de São Paulo.

Além da falta de comprovação científica sobre os supostos benefícios, o consumo dessas pedras pode apresentar riscos à saúde, especialmente quando adquiridas sem garantia de procedência. “A bile é rica em ácidos biliares e seu consumo pode acarretar intoxicação hepática, irritação gastrointestinal e até sobrecarga do fígado. Sem controle sanitário, o risco se intensifica”, alerta Carla de Castro.

A nutricionista Letícia Reimberg, da Estima Nutrição, ressalta que o consumo da vesícula ou de seus componentes não é parte da cultura alimentar brasileira. “Ela é descartada, considerada imprópria para o consumo. Aqui, outras vísceras, como fígado e coração, são valorizadas por seus nutrientes e aceitação cultural, enquanto a vesícula não é incluída”, destaca.

Além dos riscos para a saúde dos consumidores, também existem implicações no bem-estar animal. O aumento da procura resultou em relatos de práticas inadequadas em fazendas e matadouros. “Como essas pedras são extremamente raras, seu valor provoca interesse criminoso, o que pode levar a abates ilegais, maus-tratos e manipulações alimentares para induzir a formação dos cálculos”, observa Daniela.

Em janeiro, uma propriedade em São João da Boa Vista, em São Paulo, foi alvo de uma invasão por criminosos armados que levaram cerca de R$ 300 mil em pedras de vesícula. Apesar de toda a aura que envolve o “ouro bovino”, especialistas concordam que ele não é um suplemento ou medicamento com eficácia comprovada. Seu valor reside na simbologia e na tradição cultural, não em benefícios nutricionais ou funcionais.

“É fundamental esclarecer que o uso dessas pedras é oriundo de uma tradição milenar, mas não há evidências científicas que sustentem suas alegações. Ademais, sem fiscalização, esse comércio pode representar riscos à saúde pública e à reputação da cadeia de carne brasileira”, enfatiza Letícia.

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