Por: Flávia Viana
No horário das sete, onde a tradição do folhetim costuma trazer leveza reconfortante, Jacqueline Sato mostra, com elegância insubmissa, a potência do desvio. Em “Volta Por Cima”, sua personagem, Yuki, não é o ornamento nem o mistério “exótico” que tantas vezes se esperou da mulher com ascendência asiática na dramaturgia brasileira.
Yuki é uma mulher que, como tantas outras no país, tenta se reconstruir após a devastação afetiva de um relacionamento abusivo. Mas Gerson, o ex-companheiro interpretado por Enrique Diaz, insiste em se infiltrar nos escombros da vida que ela tenta reerguer — mesmo quando, nos contornos recentes da trama, surgiu a possibilidade de um novo vínculo com Sebastian, vivido por Fábio Lago.
A narrativa, com suas implicações emocionais e sociais, poderia facilmente cair em um melodrama que consola mais do que provoca, mas seu comprometimento com a humanização da personagem que tinha dificuldade de se desvincular ou reagir à opressão do ex-parceiro impediu esse rebaixamento: “Interpretar a Yuki é tocar em feridas que não são só dela — são de muitas mulheres que conhecem o peso de tentar reconstruir uma vida enquanto o passado insiste em se mostrar vivo. O Gerson não é só um ex, ele representa esse resíduo patriarcal que se recusa a ir embora, que acha que tem domínio sobre o que nunca o pertenceu. Minha escolha como atriz, sob o comando da maravilhosa Claudia Souto, foi outra: viver essa dor sem espetacularizá-la. O corpo da Yuki carrega memória e muitas vezes uma dor que até paralisa, mas cada vez mais, ela sente, mas não se dobra. E isso, para mim, é onde a atuação encontra uma espécie de pensamento — quando o gesto, o silêncio, a pausa contam mais do que o grito. É como se cada cena fosse uma forma da Yuki dizer: o que eu vivi e como respondi a isso, não me define, e eu tenho direito de construir algo diferente”, comenta.
E não é apenas Yuki que ocupa esse lugar estratégico entre o vivido e o simbólico. A própria trajetória de Sato é, em si, uma dramaturgia de deslocamento: “Eu era aquela criança que observava muito mais do que falava. Tinha um universo interno pulsando, mas não sabia ainda como fazer esse mundo atravessar a garganta. Foi só com o tempo, com o palco, com a escuta verdadeira da arte, que eu entendi que minha voz podia ser meu instrumento político, estético, emocional. E isso mudou tudo”. De menina tímida a criadora de narrativas, ela entendeu cedo que falar não é apenas dizer — é escolher como existir no espaço social.
É por isso que Yuki interessa: ela não se constrói por oposição ao masculino nem pela afirmação didática da ancestralidade. É uma mulher, e basta. Sua ascendência nipônica está ali como está em tantas brasileiras: como parte do enredo biográfico, e não como estigma ou função simbólica. Isso, em um país onde personagens asiáticos são muitas vezes moldados por estereótipos coloniais — submissos, calados, fetichizados ou ridicularizados —, constitui um gesto político. Jacqueline encara essa ruptura com naturalidade, mas não com indiferença: “É muito simbólico viver a Yuki. Porque o roteiro não cola nela um selo de ‘mulher asiática’, como se isso por si fosse uma trama, tantas vezes limitante. Ela é uma mulher, ponto. Com desejos, fracassos, raiva, libido, humor, contradições. É isso que me interessa: fazer uma mulher real, não um fetiche étnico. Isso deveria ser óbvio, mas ainda é revolucionário”.
E essa coerência entre a artista e seus projetos vai além da ficção. Jacqueline é também a mente por trás de “Mulheres Asiáticas”, docu-reality-talk-showexibido no canal E! Entertainment e no streaming da Universal+ (disponível na Amazon Prime e ClaroTV) onde se propôs a escancarar, com entrevistas, cenas do cotidiano, e desafios que fazem uma mulher ensinar algo à outra, pela primeira vez, a diversidade de mulheres que partilham ascendência asiática e vivem no Brasil — profissionais das mais variadas áreas, inclusive colegas de ofício como Ana Hikari e Danni Suzuki. A proposta do programa é clara: rasgar o véu do exotismo e devolver complexidade às existências que durante décadas foram comprimidas sob o rótulo de “minorias silenciosas”.
“Ser uma mulher de ascendência asiática no Brasil é saber, desde cedo, que alguns te verão como algum estereótipo desumanizante que insiste em excluir nossa individualidade e nossa pluralidade. No meu caso, como atriz, ou ‘asiática’ demais para interpretar uma brasileira, ou ‘não asiática’ o suficiente para interpretar uma asiática. Nunca inteira. Sempre mediada pelo olhar do outro. Com o ‘Mulheres Asiáticas’, quis desmontar esse espelho distorcido. Mostrar que por trás do rótulo existe vida pulsante, múltipla, conflitante. Profissionais brilhantes, complexas, vulneráveis e, acima de tudo, potentes. Muitas de nós crescemos ouvindo que era melhor não fazer barulho, então eu quis ligar o microfone. O programa não é uma resposta didática, é uma provocação poética. É sobre dizer: estamos aqui. Nunca fomos poucas, nem passivas. Só estavam olhando com a lente errada ou talvez pelo viés que muitas vezes fosse conveniente”, conclui.
Jacqueline Sato fala sobre crescimento de Yuki em ‘Volta Por Cima’




